10 de outubro de 2009
Descobrindo a escrita e os livros
Entrevista concedida pelo Professor João Batista Araújo.
1. Como é o ambiente familiar “letrado”? Como as coisas se passam nesses ambientes? Como é a experiência das crianças com livros e materiais impressos ANTES de virem para a escola?
A desigualdade social no Brasil também se reflete na desigualdade dos alunos em suas experiências com livros e ambientes letrados. Algumas crianças – menos de 30%, possuem uma experiência muito rica com livros, textos, leitura pelos pais, familiaridade com letras, lápis, papel, enfim, com o mundo da leitura e da escrita. Mas a maioria das crianças – inclusive muitas que passaram pela pré-escola, não possuem essa familiaridade. Não sabem para que serve a escrita, não curtiram uma boa história lida para eles num ambiente de aconchego. Para elas, aprender a ler e a escrever não faz muito sentido – às vezes não faz qualquer sentido – pois não estão habituadas com esse mundo.
2. O que as crianças aprendem a partir do convívio natural com livros e textos impressos? Como essas competências são importantes para a alfabetização?
A convivência com livros e materiais impressos transmite quatro conjuntos importantes de competências. De um lado, transmite o hábito pela leitura. Esta é a base mais importante para o sucesso escolar. De outro lado, e idealmente, transmite o gosto pela leitura. O hábito mais o gosto são os dois ingredientes fundamentais para a criança se dispor a ler. Em terceiro lugar, desenvolve e enriquece o vocabulário e a sintaxe. Um livro ou texto impresso qualquer normalmente possui um vocabulário mais rico e refinado do que o vocabulário que usamos na fala normal – mesmo em ambientes familiares altamente escolarizados. Isso ajuda a criança a aprender novas palavras e a usá-las, e, dessa forma, ampliar seu vocabulário. Além disso, a linguagem escrita é mais formal, e ajuda a criança a se aproximar e se familiarizar com a linguagem falada padrão, que é mais estruturada, e sobretudo com a linguagem formal dos livros e da escrita – que é o aspecto central do ensino escolar. Finalmente, o convívio com livros e textos impressos transmite conhecimentos específicos sobre os livros, o que se encontra neles, como os textos se dispõem no papel, a direção da leitura, o princípio, meio e fim de um texto, o que fica á direita e à esquerda da página, como funciona uma história, a relação entre as figuras e o texto, e, enfim, a metalinguagem.
3. O que é metalinguagem? O que são competências metalingüísticas?
Metalinguagem é a linguagem que usamos para falar sobre a língua. Por exemplo, conceitos como palavra, vírgula, frase, parágrafo, pontuação, etc. fazem parte da metalinguagem. Conhecer a metalinguagem é fundamental para o aluno compreender as instruções e comandos do professor e a conversar e refletir sobre aquilo que ouve e lê.
4. O que acontece com a criança que não teve um ambiente estimulante antes da escola?
Os prejuízos são imensos, frequentemente são irrecuperáveis. O primeiro deles refere-se ao vocabulário. Os livros constituem excepcional veículo para o desenvolvimento do vocabulário, e são particularmente valiosos para crianças que vivem em ambientes em que a linguagem falada não expõe o aluno a um vocabulário rico e variado. Estudos a respeito da linguagem dos livros revela que um livro infantil possui 30 vezes mais palavras “raras” do que a fala normal de pais de nível universitário com seus filhos. Palavras “raras” é um termo usado para designar palavras menos freqüentes numa língua, palavras importantes para o desenvolvimento do pensamento e da linguagem, mas que não fazem parte do nosso quotidiano.
O segundo prejuízo refere-se à sintaxe. Uma criança que foi exposta apenas à linguagem oral, especialmente em famílias e comunidades de nível sócio-cultural com limitada escolaridade, não está muito habituada a ouvir e usar construções sintáticas mais elaboradas, adequadas a modos de pensar mais complexos. Numa fala normal – mesmo entre pessoas de nível escolar elevado – usamos relativamente poucas frases compostas, frases subordinadas e pronomes, ao passo que as elipses e sobretudo os dêiticos são largamente utilizados. Quando digo hoje, na fala, todos sabem a que me refiro. Num texto escrito a palavra “hoje” tem um referente que precisa ser identificado, para que o texto faça sentido. Na linguagem oral tendemos a ser simples, diretos, redundantes, inclusive complementando a fala com expressões não-verbais. A linguagem escrita exige mais reflexão e análise do leitor, habilidades fundamentais para desenvolver o raciocínio e para o sucesso escolar.
Finalmente, o ambiente estimulante contribui para criar o gosto e hábito da leitura – peças fundamentais para sustentar um processo de aprendizagem bem sucedido e uma trajetória escolar que nos conduza à autonomia para ler e compreender o que lemos.
5. Qual a importância dos livros, da leitura e da “escrita ambiental”, aquela que se encontra nos rótulos, nos letreiros, nas placas?
Todas as oportunidades para chamar a atenção para a escrita, para as letras e para as palavras devem ser usadas pelos pais e pelas pessoas que interagem com as crianças. Isso ajuda as crianças a descobrir a especificidade do código alfabético – palavras são diferentes de desenho. Também ajuda a descobrir as letras, e, posteriormente, o papel que cada letra tem numa palavra ou frase.
Num primeiro momento a criança pode pensar que as palavras são como desenhos – a palavra Coca Cola ou Padaria, por exemplo, são vistas pela criança como um todo. Mas aos poucos, na medida em que ela é exposta a outras palavras e letras, começa a descobrir que as palavras se compõem de letras, e que as mesmas letras servem para compor diferentes palavras. Ou seja, ela começa a aprender a especificidade do código alfabético e sua diferença com outras formas de grafismo, especialmente o desenho. Cartazes, letreiros, sinais, placas, nomes de produtos em caixas de supermercado, listas de compras, receitas – tudo isso ajuda a criança a aprender sobre o alfabeto. E, mais do que isso, ajuda a criança a aprender sobre os “usos sociais” da escrita, ou seja, que a linguagem escrita serve a várias funções diferentes de comunicação. Normalmente isso é o suficiente para levar a criança a querer aprender a ler, a descobrir os segredos do Código Alfabético.
Mas a “escrita ambiental” não é suficiente. Não existe substituto para a leitura e a imersão nos livros. A leitura ambiental é pobre em vocabulário e sintaxe. Não leva ao desenvolvimento do espírito analítico, próprio da leitura. E, sobretudo, não estimula a imaginação, aos sonhos, à fantasia e à busca da compreensão dos outros e do mundo.
6. Que tipos de livros as crianças devem ler antes de chegarem à idade escolar?
Na verdade esta pergunta precisa ser reformulada, pois a criança normalmente aprende a ler na escola. O que a pergunta quer dizer é: a que livros a criança deve ter sido exposta antes de começar a aprender a ler? A única resposta correta a esta pergunta é: tudo o que for possível ler para ela – desde que ela curta essas leituras. No entanto, a psicologia do desenvolvimento e a psicologia cognitiva nos permitem estabelecer um “cardápio” mais bem estruturado de leituras para crianças.
Hoje sabemos com bastante precisão sobre os tipos de livros mais adequados para crianças de diferentes idades. Diversos programas de leitura para crianças – desde a gestação – têm proporcionado um conhecimento bastante interessante a respeito dessas questões. Por exemplo, hoje sabemos que as crianças de poucas semanas de idade reconhecem um texto de poesia que a sua mãe costumava ler ou recitar durante a gravidez. Quando expostas a dois textos – o familiar e um texto novo – as crianças reagem ao texto familiar, demonstrando que o desenvolvimento das competências lingüísticas antecede ao parto.
O conceito de atividade ou livro apropriado ao nível de desenvolvimento da criança é perigoso, na medida em que pode sugerir etapas estanques ou fixas do desenvolvimento. Ou seja, não é adequado dizer que um livro só pode ser lido ou usado para uma determinada idade. Mesmo porque os bons livros são para pessoas (e não somente crianças) de todas as idades.
Mas a observação e a experiência nos indicam que tipos de livros são mais interessantes e preferidos por crianças ao longo dos primeiros anos de vida. Pelo menos sabemos a partir de que idade certos conteúdos e formatos de livros são mais apreciados pelas crianças. Por exemplo, crianças de 6 meses adoram livros com fotos de outras crianças; crianças de dois anos gostam de livros sobre plantas, animais, meios de transporte; crianças de três anos gostam de livros que explicam os porquês das coisas, e assim por diante. Tudo isso é bem mapeado e nos permite escolher e oferecer livros adequados às crianças das várias idades. Mas nada substitui o prazer da própria criança escolher o que ela quer ver, folhear ou a história que ela quer ouvir – mesmo repetidamente pela enésima vez.
Finalmente cabe ressaltar a variedade como um critério importante na escolha de livros para crianças antes da idade escolar. Os livros de histórias (narrativas) são muito apreciados e muito importantes. Mas não basta ler histórias. Crianças também gostam de poemas – especialmente poemas com rimas, que as ajudam a brincar e entender o funcionamento da língua. Gostam de parlendas e travalínguas. Mas os livros informativos e descritivos são essenciais na biblioteca infantil, pois são eles que ajudam a desenvolver vocabulário, conceitos e instrumentos e informações relevantes para pensar a respeito do mundo que os rodeia.
7. Qual a diferença entre ler e contar histórias? Isso faz diferença?
Ambos são importantes, mas são muito diferentes em seus objetivos e em seus resultados. Contar histórias ajuda a estimular a atenção e a imaginação. Quando a própria criança conta a história, ela precisa organizar o pensamento – ainda que limitado às categorias do princípio-meio-fim próprias do discurso narrativo. Mesmo com uma sintaxe repetitiva (aí, aí, aí, então, depois, etc.) a criança vai aprendendo a justapor e encadear idéias, e chegar a um final. Histórias bem contadas por adulto ajudam a criança a imaginar, sonhar, completar o que falta, ler a linguagem embutida nos gestos, na entonação, nos movimentos.
Já a leitura de texto escrito tem outras características, pois o texto escrito obedece a normas formais do discurso. O vocabulário é mais rico, as construções sintáticas, mais elaboradas. Nos livros bem ilustrados, a ilustração permite uma leitura diferente ou complementar do texto pela criança.
Os estudos sobre a eficácia da leitura em voz alta para crianças chamam atenção para dois aspectos importantes. Em primeiro lugar – e da mesma forma que a fala do adulto com a criança – a leitura é muito mais eficaz quanto ela é interativa, dialogada, quando a criança participa desde antes de abrir o livro, até depois, tecendo ilações, paralelos e identificando situações semelhantes fora do contexto da leitura.
Ou seja: a boa leitura é sempre pretexto para uma boa conversa. Desde cedo os adultos devem acostumar as crianças a participarem da leitura, escolhendo os livros, identificando as características da capa, discriminando o que é ilustração e o que é palavra, nomeando os objetos, fazendo e verificando predições, adivinhando o que vai acontecer, completando palavras ou frases já lidas repetidas vezes, comentando, dando opiniões, demonstrando seus sentimentos e interpretações.
Ou seja: a boa leitura é uma boa desculpa para espichar uma boa conversa. O segundo aspecto é a fidelidade ao que está escrito. Crianças policiam os pais quando eles alteram o texto de histórias bem conhecidas. A característica do texto escrito é a imutabilidade – os adultos devem acostumar as crianças a ler o que está escrito – inclusive explicando palavras difíceis ou usadas em contextos pouco usuais. É esse respeito pela palavra que vai ajudar a criança, mais tarde, a desenvolver o espírito analítico e a precisão, e ser capaz de ler o que está escrito, e não o que ela pensa, acha ou gostaria que estivesse escrito.
8. A criança que chega a escola sem saber ler é capaz de compreender alguma coisa?
Aprender a Ler. Ler para Aprender. Esta é a logomarca do Instituto Alfa e Beto. Ela chama atenção para essas duas importantes dimensões do processo de aprendizagem: ler e compreender. Vamos refletir sobre isso? Leia o texto a seguir:
"...os físicos vão brincar de Deus com o LHC. Eles aceleração seus hádrons em sentidos opostos dentro de anéis gigantescos, levando-os a 99,9% da velocidade da luz. Então, com a ajuda de um poderoso Ímã, vão obrigá-los a mudar de sentido e se chocar. O choque espatifará os hádrons diante de placas sensíveis, que vão registrar e analisar o resultado da trombada - restos de matéria e energia miraculosamente encapsuladas, cada um produzindo uma assinatura de sua natureza e de sua hierarquia no momento da criação do universo. De todas as particular a ser produzidas na colisão monumental a que mais interessa aos físicos é um certo “bóson de Higgs”, que por enquanto existe apenas nas equações geniais de um físico infles de 79 anos chamado Peter Higgs... Os bosons podem ir do genérico fóton de luz ao especialíssimo bóson de Higgs... Ele foi a partícula mensageira que carregou a energia de um campo que também tem o nome de Higgs. É por meio da interação com esse campo que as outras partículas ganham massa no começo de tudo. Quanto maior a interação, maior a massa da partícula. " (Revista Veja, 25 de junho de 2008, p. 89)
Você certamente leu todo o texto. Agora, será que você entendeu o que leu? Você saberia dizer o que é fóton, massa, ou porque a partícula é maior em função da interação com o campo de Higgs? Você saberia explicar o experimento ou justificar a importância de acelerar os hádrons à velocidade da luz? Enfim, se você estivesse diante de alunos de física do ensino médio, você seria capaz de recontar esse texto usando suas próprias palavras?
Possivelmente a resposta a todas essas perguntas é NÃO. E a razão é que você sabe ler, mas quem sabe ler não é capaz de entender tudo o que lê. A compreensão depende de outros fatores, além da leitura. Ler e compreender são competências distintas – e, como você acaba de experimentar – independentes. Você leu, e não entendeu.
Aprender a Ler refere-se ao estágio da alfabetização – e, em parte, às atividades que o precedem na infância. As famílias, creches e pré-escolas muito podem contribuir para preparar e facilitar o processo de alfabetização. Mas a função mais importante da infância – e dos responsáveis pela criança nesse período de seu desenvolvimento – é ensinar a criança a ler o mundo e compreender as coisas, mesmo sem saber ler.
É claro que a criança que chega a escola sem saber ler compreende muita coisa sobre si, sobre as pessoas, sobre o mundo. Quando maior o seu vocabulário e sua capacidade de pensar e articular idéias, mais será capaz de aprender – no mundo, na escola e nos livros. O processo de compreensão se inicia no nascimento e termina com a morte. Ele não para nunca. O processo de aprender a ler é finito, e tem o seu ápice no 1º ano da vida escolar. Podemos compreender muita coisa sem aprender a ler e sem ler. Podemos ler muita coisa sem compreender. Mas só podemos compreender o que lemos se soubermos ler muito bem.
9. O que é “escrita espontânea”? Qual a sua importância para a alfabetização?
A escrita espontânea é uma das manifestações do grafismo, da tendência a desenhar, rabiscar ou imitar pessoas escrevendo.
As crianças que vivem em ambientes que valorizam a leitura, e escrita e a escola estimulam as crianças desde cedo a desenhar, rabiscar, copiar letras, fingir que estão escrevendo. As próprias crianças, normalmente a partir de 4 anos, adoram fazer isso. Elas colocam um traço num desenho e dizem que o traço é o nome dela. Ou garatujam uma série de rabiscos e pedem para você ler a história que ela escreveu. A escrita espontânea é isso – parte da pré-história do processo de alfabetização.
Ela ajuda a preparar a criança para o mundo da escrita, lida com os instrumentos da escrita como o lápis e o papel, e com alguns processos da escrita, como a idéia de representar, por meio de desenhos especiais (que chamamos de letras e palavras) as idéias da criança. Antes de iniciar o processo da alfabetização, a escrita espontânea pode ajudar as crianças a desenvolver curiosidade, motivação e interesse pela escrita e por aprender a escrever.
Ao iniciar o processo da alfabetização, a escrita espontânea perde o interesse e o sentido, pois alfabetizar significa exatamente o contrário do processo espontâneo – trata-se de um processo deliberado de dar as crianças instrumentos robustos para que ela adquira os segredos do funcionamento do código alfabético. Tudo a seu tempo e em seu próprio lugar.
10. Qual a diferença entre ser capaz de contar uma história e ser capaz de escrever uma história?
Escrever é muito mais difícil do que ler. Desde cedo as crianças são capazes de inventar, contar e recontar histórias, trechos de histórias ou completar detalhes que faltam. Basta memória e imaginação. A estrutura narrativa é parte de nosso discurso.
A escrita pressupõe muitos outros recursos. De um lado, há os aspectos mecânicos, como a capacidade de escrever (grafar) de forma legível (caligrafia). De outro, há aspectos técnicos, como a forma correta de escrever (ortografia) e sinalizar a pontuação. Isso, claro, depois que o sujeito lembra a forma da palavra a ser escrita. Há aspetos formais, como a disposição do texto na página – um convite se dispõe de forma diferente de um conto ou de um cartaz.
Os aspectos mais críticos residem na organização das idéias, na escolha de palavras, no domínio da sintaxe. Tudo isso requer a mobilização de complexas estruturas cognitivas que, embora mobilizadas ao mesmo tempo na hora de planejar e escrever, requerem um processo de aprendizagem mais longo do que o processo de aprender a ler. Esta é mais uma razão para se aproveitar bem os anos antes da escola e criar nas crianças enormes repertórios de textos lidos – o que vai ajudá-las, e muito, na hora de escrever.
FONTE: http://www.alfaebeto.com.br/imprimeEntrevista.php?id=1
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